A arte de ser feliz
Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as
plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água
que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente
feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Á
s vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não
existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
Poetisa brasileira, nasceu no Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1901
Em 1910, concluiu o curso primário e, sete anos depois diplomou-se professora primária e passou a desenvolver intensa atividade como educadora. Estudou também línguas, canto, violino. Aos dezoitos anos lançou o livro de poemas Espectros, pelo qual recebeu elogios da crítica especializada. Em 1934 organizou a primeira biblioteca infantil do país. Em 1935 foi nomeada professora de Literatura Luso-brasileira e, depois, de Técnica e Crítica Literária na Universidade do então Distrito Federal. Cecília Meireles faleceu no dia 9 de novembro de 1964, em pleno apogeu de sua atividade literária. Recebeu, post mortem, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. De fina espiritualidade, sua poesia, sem deixar de ser moderna, mergulha raízes nas essências do simbolismo, caracterizando-se, no plano formal, pela riqueza de recursos estilísticos. Obras principais: Viagem (1938); Vaga música (1942); Mar absoluto (1945); Romanceiro da Inconfidência (1953); Solombra (1964).
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