quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Drummond disse: Amar a nossa falta mesma de amor





Amar



Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados amar?



Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?



Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave

de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.



Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



Autor: Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de AndradePoeta e prosador brasileiro (Itabira, MG, 1902 – Rio de Janeiro, 1987). Poesia complexa e profunda, de múltiplas facetas: a visão de um universo grotesco, a tristeza e horror à vida, o senso de solidariedade humana, a luta pela expressão. Em gênero mais leve, como a crônica, revela, ora com desencanto, ora com espírito satírico, minuciosa observação do cotidiano. Tem sido traduzido para várias línguas. Obras principais: poesia — Alguma poesia (1930), Brejo das almas (1934), Sentimento do mundo (1940), José (1942), A rosa do povo (1945), A paixão medida (1981), Corpo (1984); crônicas —Contos de aprendiz (1951), Fala amendoeira (1957), Cadeira de balanço (1966), O poder ultrajovem (1972)

Nenhum comentário: